sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Ordens

“Me desculpe, senhor, mas ordens existem para serem cumpridas..”
Já no seio da família a pessoa se acostuma a cumprir (ou questionar) ordens. Seja quando tua mãe te manda agradecer alguma coisa que tu ganhou, ou te manda juntar os teus brinquedos ou é o teu pai, que diz pra tu fechar a porta, atender o telefone e por aí vai. Então a gente vai pro colégio e lá estão elas nos esperando. “...senta direito, Joãozinho...,” “...não, apaga e faz tudo de novo...,” “...não é pra dar tapa na cara do coleguinha...” ...”guardem o material e vamos esperar o sinal pra sair” e tantas outras que povoam a realidade dos alunos. Passando para a fase adulta, sempre seguimos cumprindo as ordens dos chefes, das autoridades policiais, civis, sanitárias e eclesiásticas, pra ficar apenas em alguns exemplos de autoridade. Se casamos, então aí vem um prato cheio de ordens que - verbalizadas ou não - são cumpridas: Pague contas, respeite o outro, ouça, tenha paciência, seja romântico, mande flores, memorize datas, abra a porta do carro, perceba que ela cortou o cabelo, perceba que ela trocou de “Loreal castanho esvoaçante 32A" para “Loreal castanho reluzente 32B”, não olhe pros lados – engraçado, pra atravessar a rua é justamente o oposto - me liga quando tu chegar, pensa em mim, manda um abração pra tua mãe por mim, dá uma olhada e vê se precisa trocar a fralda do Pedrinho... Ufa!

Nããão...., não to me queixando. Vou trazer pro debate outro tipo de ordem e é agora:

As máquinas!

Sim, isso mesmo, as máquinas nos dão tantas ordens hoje em dia, quanto nossas mães nos davam. É só prestar atenção: Experimente usar um caixa eletrônico: Insira o cartão, digite a senha, retire o cartão, por favor, aguarde o dinheiro (olha se precisa me pedir pra eu aguardar o meu dinheiro se foi justamente por isso que eu cumpri todas as ordens anteriores...). E o aprendizado das ordens delas é intuitivo, não se lê mais manual pra nada, é tudo na base da tentativa-erro. Os celulares te mandam recarregá-los, colocar créditos, atendê-los exigem a tua atenção nos momentos mais inoportunos. E no mundo dos computadores então? Hein? Eles MANDAM em ti cara, o tempo todo, tu nem tem mais querer, aliás, tu acha que tem querer, mas a última palavra é dele. Sempre. E tem gente que ainda chama o computador de burro.

(...)

Agora por exemplo, vou ter que terminar, porque o meu laptop tá me mandando conectar na tomada e eu esqueci o cabo em casa...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O homem que não esquecia.

Era uma vez um cara muito de bem com a vida, tinha amigos, emprego estável, boa saúde e gostava de esportes, mas também era possuidor de um talento beeem incomum: Ele não esquecia fatos. Nenhum. Sério, nada daquilo que diziam pra ele ou que ele vivenciava saía de sua memória, só ficava ali esperando a hora certa pra voltar. Tudo começou quando ele estava na primeira série do colégio e a professora estava explicando que quando ela chamasse o nome dos alunos, estes deveriam responder: “presente”. Ele na época só era um guri muito curioso, não tinha ainda desenvolvido sua habilidade mnemônica. Então, ele de bate pronto interrompeu a profe pra perguntar porque eles deveriam responder “presente”. A educadora, para evitar explicar o real significado da palavra naquele contexto, preferiu contar uma historinha, dizendo que era porque se eles respondessem certinho o tal do presente TODOS os dias, no fim do ano eles iam ganhar um... presente! Simples, não? Ela só não contava que o guri ia cobrar no fim do ano o tal do presente...
Aí começou o talento, mania, seja lá o que for o nome certo para a habilidade, costume, tara do cara. Fazia por birra mesmo. Não esquecia o que lhe prometiam, nem que fosse só pra depois azucrinar as pessoas com a lembrança do prometido. Se acostumou a ouvir frases do tipo: “...ah, mas tu não esqueceu, hein?” “Esse Arnaldo, hehehe, tem uma memória de elefante...” Era pitoresco até, os colegas do trabalho nem usavam mais agenda para fatos do cotidiano e/ou compromissos, era só perguntar pro Arnaldo e tava tudo resolvido. Convidaram ele diversas vezes pra ele ir trabalhar no arquivo do escritório – substituindo-o – mas ele não gostava de usar esse talento pra ganhar dinheiro. Só pra infernizar mesmo. Uma vez ele abordou um cara na fila do banco assim: “Lembra de mim? Aquela vez que eu vinha na BR 392 entre Caçapava e São Sepé, era o último domingo de julho de 2003, tava meio pra chuva, tu vinha num Scania vermelho trucado, no sentido São Sepé – Caçapava, me deu um sinal de luz e daí eu te cumprimentei e tudo? Eu tinha um corsinha prata na época, meia boca já, com uns 57 mil km, tinha feito o motor e tal, mas não tava lá essas coisas...” O homem da fila ficou olhando pro Arnaldo com CERTEZA que ele era loco e só acenou com a cabeça umas duas vezes e lascou: “...aham, é mesmo... tudo bem, tudo bem...Ah, com licença, tá na minha vez... até mais...” E saiu rapidinho daquela situação constrangedora, mas ficou pensando... Ele sim dirigia um Scania vermelho trucado... e fazia aquele trecho, buscando calcário em Caçapava e trazendo até o terminal da ALL em Santa Maria... e domingo ERA dia que - contrariando a lógica dos dias úteis de trabalho pra todo mundo – ele SEMPRE tava na estrada... Após todas essas elucubrações mentais, ainda no caixa, o cara do caminhão começou a procurar com os olhos o maluco do Arnaldo, que ao longe se dava conta de que o caminhoneiro finalmente tinha se lembrado do fato e pra seu próprio deleite, observava a reação do cidadão confuso.
Situações semelhantes ocorriam o tempo todo, se naquele dia era um caminhoneiro que tinha passado por ele uma vez na vida, ontem poderia ser um amigo de infância que um dia disse pro Arnaldo que iria ao seu aniversário e não foi e vinte anos depois foi surpreendido pelo Arnaldo cobrando do cara a presença naquele evento e hoje poderia ser tu, se tu um dia tivesse cumprimentado o Arnaldo numa festa de algum amigo em comum, ou comentado com ele sobre o tempo, dentro de um elevador ou numa parada de ônibus.
Arnaldo não escapou da ironia do destino, entretanto. Semana passada, o amigo que me contou essa história me relatou que cruzou pelo Arnaldo, de pé em frente a um banco de madeira do calçadão da Bozano e parou pra conversar, em nome dos velhos tempos... Ao que tudo indica, ele estava sentado e levantou pra atender o celular e, quando desligou, não conseguia lembrar se estava chegando ao calçadão ou indo embora pra casa... Sem falar que sequer reconheceu o seu amigo, tratando-o como se fosse um transeunte qualquer que havia parado só pra puxar papo com um senil portador de síndrome de Alzheimer...