terça-feira, 23 de junho de 2009

INSÓLITO.

Aquele era para ser mais um dia de trabalho na casa dos Hoffmeisters. Ela havia decidido deixar de posar lá já fazia algum tempo, por conta de um incidente no mínimo medonho que tinha acontecido entre a sra. Hoffmeister e seu esposo. Agora então só passava o dia lá, lavando e passando, preparando o almoço e lavando a louça e escutando estórias quase sempre impressionantes mesmo do alto de seus 68 anos de idade e de seus cabelos brancos que insistiam em emoldurar um rosto cansado e marcado pelos anos de jornada difícil que geralmente costuma ser a vida do pobre. Estórias essas que escutava não por que quisesse escutar, mas porque o pessoal da casa era meio escandaloso mesmo - dentro de casa. Na rua, eram pessoas normais, bem sucedidas, como costumam ser essa gente com esse tipo de problema. A rotina da dona Dilcinete era sempre a mesma: levantar antes do sol nascer, ônibus com as mesmas pessoas nos mesmos lugares quase sempre (que nem no tempo de escola em sala de aula), trabalho na casa dos Hoffmeister, ônibus de novo depois do sol se pôr, chegar em casa, seus próprios afazeres, dormir. Ela estava chegando na parada de ônibus quando começou a se sentir estranha. Era algo que começou no estômago e subiu até o meio do peito, acompanhado de palpitações. “Será que vou ter um troço?” pensou a humilde senhora. Eis que foi arrebatada de algo como um choque, não desses que derruba, mas daqueles que te tiram o chão debaixo dos pés. Então, num instante foi como se o raciocínio normal e o pensamento lógico dela lhe tivessem sido arrancados à força, tão rápido como um raio. Ela ficou ali, de pé, olhando o vazio... por vários minutos... As pessoas vinham e iam, pegavam o ônibus (sim, “O” ônibus, pois só passava uma linha por ali.) e viam que algo estava estranho, mas acharam que era por causa do dia feio que fazia então, com muita cerração e umidade, típico dos arredores de Mendoza, próxima a cordilheira dos Andes. Aquele vazio que agora a preenchia a manteve assim até o momento que atingiu o clímax: ela começou a se mexer de novo, só que dessa vez, virou-se para a esquerda, foi em direção do canto da parada de ônibus, que nada mais era que um tabuão estreito coberto por telhas de amianto, e apoiando-se com as mãos na coluna, subiu no banco com os dois pés. Primeiro, ficou de pé por um segundo ou dois, e então, agachou-se como se fosse uma coruja. E ali ficou. Vazia, inerte, sem se dar conta do que passava à sua volta. Acocorada igual a uma coruja. Até que, cerca de seis horas depois, passou uma moça que, diferente dos outros que por ali passaram, insistiu em fazer com a senhora falasse, colocou a mão em seu rosto e lhe chamou várias vezes, ao que a Dona Dilcinete atendeu, sem lembrar de nada do que havia acontecido. Naquele dia, os Hoffmeisters pediram comida chinesa por delivery...




Naquele mesmo momento, na lateral menos protegida da basílica do Vaticano, dois oficiais de segurança vestidos com seu tradicional uniforme azul, amarelo e vermelho da guarda suíça, desenhado por Michelangelo há mais de quatrocentos anos, voltavam do almoço e conversavam sobre a última derrota do Lazio para a Fiorentina pelo campeonato italiano. Depois de alguns instantes, Enrico, o mais velho entre os dois, foi se apresentar ao seu imediato superior, deixando o novato Rudolf no seu posto, que deveria guarnecer pelas próximas três horas. Pensava na vida, agora que havia conseguido entrar para a seleta instituição militar responsável pela segurança não só da sede da Igreja Católica, mas do próprio escolhido por Deus para dirigi-la. Era um dia quente para os padrões europeus, abafado e aparentemente monótono, bem como são os dias em que eventos muitas vezes sem qualquer explicação ou razão de ser aguardam o momento certo para acontecer. Os turistas não passavam por ali, dentre os nove postos da guarda ao redor da Piazza San Pietro, esse era mais tedioso de se estar, pois ficava meio na penumbra, entre as colunas do lado esquerdo da Basílica, onde mal dava para enxergar um pedaço da lateral direita do obelisco do centro da praça. A vida de um oficial da guarda suíça não era nada fácil. Para pertencer à instituição, o candidato deve ser solteiro, católico, com nível superior e ter ótima constituição física, o que para Rudolf não era muito difícil, dado o seu gosto extremado pelo “calcio”, como os italianos chamam o futebol. Havia naquele dia almoçado pasta ao sugo e tomado uma laranjada, uma refeição coroada por uma singela maçã, que comeu ao passar pelo caminho lateral, calçado por pedras cortadas cuidadosamente em cubos perfeitos, alisados pelas centenas de anos que estavam sob os pés dos transeuntes. Seria mais um dia comum. Seria, não fosse o fato de que o jovem Rudolf, após estar ali de pé por apenas uma hora, começasse a sentir algo muito estranho, algo que jamais tinha sentido antes, mas que seu instinto lhe dizia que era grave, pois tentou verbalizar um pedido de socorro, mas não teve mais controle de seu aparelho fonador. Ficou ali, imóvel (a bem da verdade, como deveria estar), imperceptível à curiosidade das outras pessoas, como que congelado, apesar do calor que seu esquisito uniforme proporcionava. O próximo passo foi tentar descruzar os braços da posição de descansar, algo que não conseguiu apesar de sua significante força física. Parecia preso dentro de seu próprio corpo, tentando escapar de algum modo, vendo as pessoas ao longe, sem poder pedir ajuda. Começou a entrar em desespero quando um casal de japoneses com um guia de viagens na mão se aproximou e perguntou algo que ele não entendeu, mas que não parecia japonês, muito menos italiano. Foi então que ele percebeu que havia deixado também de pensar em sua língua materna, o francês. Pensava agora em hebraico, pois visualizava em sua mente os caracteres que havia uma vez visto numa Torá aberta ao visitar uma sinagoga com sua escola. Ao não obterem resposta e estranhando muito a atitude rude do guarda, os orientais foram embora, deixando o prisioneiro de seu próprio corpo à mercê de sua sorte. Ao cabo de suas três horas de prontidão, Rudolf avistou o amigo se aproximando e de repente, quando sentiu a presença do colega em sua frente, foi como que aos poucos se libertasse de maneira bastante rara da paralisia, fazendo com que Enrico ficasse perplexo ao ver tal cena inédita. Ao tentar explicar por que não se virou ao ser chamado de longe pelo amigo, Rudolf ainda largava palavras em hebraico misturadas ao idioma italiano, algo que durante muito tempo ainda causaria estranheza a todas as pessoas a quem ele tentava convencer de que tudo havia sido real...


Nesse mesmo dia, no outro lado do planeta, Daca, a capital de um dos países com mais desnutridos do mundo, Bangladesh, acordara para mais um dia de muito calor tropical, com pouco vento, na realidade uma leve brisa morna, que só fazia carregar os odores de sua população de um lado para outro, sem refrescar de modo algum. No meio de um cruzamento perto da rua do mercado ao ar livre, estava Mohammed, esbaforido com o vai-e-vem dos carros, ônibus, riquixás, tuk-tuks, bicicletas e especialmente das pessoas, muitas pessoas, em número desproporcional ao que a cidade parecia suportar ou precisar. Não via a hora de poder ir para casa, tomar um banho e tirar aquele incômodo uniforme de guarda de trânsito, composto por sapatos pretos surrados, uma simples calça de sarja azul marinho, uma camisa de botões branca, que teimava em não ficar dentro das calças (talvez por causa de seu proeminente volume abdominal) e de um quepe preto triste, com um símbolo que deveria ser de metal, mas que era de plástico mesmo, dado as suas capacidades financeiras. As únicas armas que dispunha para tentar colocar ordem naquele caos, além de seu apito infeliz, eram suas próprias mãos, que gesticulavam furiosamente sem parecer surtir qualquer efeito prático em termos de organização viária. Sempre era assim, ninguém dava a preferencial, tampouco respeitava o direito de passagem dos pedestres, que por sua vez, desrespeitavam os veículos, caminhando por entre eles, desviando dos diversos obstáculos móveis e imóveis que aquela bagunça a seu modo organizada proporcionava. Era de certo maneira uma atividade sem risco para os padrões locais de periculosidade, já que com tamanha confusão, o transito fluía lentamente, não oferecendo maior risco àqueles que dele participavam. Em um determinado momento, Mohammed, que havia recebido seu nome em homenagem ao profeta e era filho do meio em uma família de seis irmãos (aliás com tantos filhos, quem é o filho do meio afinal de contas?), focou sem querer no desenho vermelho com sombreado em amarelo de um riquixá parado meio por sobre a calçada (quem se importa?) no outro lado da rua. Não entendeu bem a princípio porque tal detalhe lhe tinha chamado tanto a atenção e seguiu olhando, focado, parado. Parecia que nada mais no mundo existia, só aquele desenho vermelho que agora, depois de alguns segundos, havia saído do foco, como quando você olha para o seu próprio nariz, e então mais parecia um borrão de vermelho intenso com contornos amarelados, impossível de se desviar o olhar. A imagem aérea da cena retratava um formigueiro em ação, com alguns elementos estáticos, entre eles o Sancho Pança hipnotizado, Mohammed. Do alto de um prédio, alguém a tudo observava, e desfrutava com indisfarçado prazer do poder que tinha de fazer isso com o pobre homem, que indiferente ao que passava à sua volta, jazia em pé, despercebido à massa disforme humana e mecânica à sua volta, que insistia em ferver até o pôr do sol. Exatamente às sete e quinze, o homem da sacada cansou de seu passatempo e libertou o guarda, que retornou a apitar e gesticular freneticamente, sem dar-se conta de que seu expediente já havia acabado, frente a seu colega de trabalho, que o olhava, incrédulo com o que havia presenciado.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

O dia do juízo final.

Ele está aí. Já chegou pra muita gente, chega a todo momento, enquanto escrevo o texto, enquanto você está lendo ele. Pra nós dois aqui – eu e você – em comum temos o fato de que ele ainda não chegou. Ainda. Ótimo, não? Certeza nesse mundo mesmo, só temos de que, se existimos, é porque nascemos, e que, se nascemos, um dia vamos deixar de existir. Tive a idéia de escrever sobre o juízo final ao ouvir falar da morte precoce de um conhecido. A gente sempre imagina o dia do Juízo final como aquele citado na Bíblia, onde todas as pessoas, ao mesmo tempo, teriam que prestar contas sobre os seus atos aqui nesse plano, mas na realidade, como citei acima, ele acontece em momentos diferentes para cada um de nós. Definitivo e para sempre. Isto posto, e racionalmente aceito como um fato irreversível e do qual não se pode fugir, seja você preto ou branco, rico ou pobre, poderíamos pensar mais a fundo sobre o sentido da vida, como propôs Woody Allen em um filme antigo. Acredito, a inspiração que me disse isso, que o julgamento que sofremos além do divino, também é na realidade um julgamento bem terreno, feito pelos que ficam. “Que pena, era um cara tão bom.” Ou então: “Já foi tarde, não prestava nada mesmo...” Aí está a origem real do termo “juízo final”. Que julgamento você gostaria de ter? Ainda há tempo de mudar o curso das coisas, sempre há. Existe no mundo espaço para muitos “Nunca é tarde para...” na vida da gente. E já que certezas na vida da gente existem basicamente as duas aquelas mencionadas antes – o chegar nesse plano e sair dele - procure aproveitar ao máximo o intervalo entre elas, fazendo o melhor possível da sua vida, para o seu bem e para o próximo, sem esperar julgamento algum!