segunda-feira, 31 de março de 2014

AS PULGAS

Era uma vez um urso marrom, que morava num parque nacional canadense, pertinho da fronteira com os Estados Unidos. Sua alimentação basicamente consistia de peixes que ele pateava pra fora dos rios e lagos do parque, além daquilo que ele encontrava nos acampamentos dos humanos, restos deixados inadvertidamente e que serviam de alimento para o nosso amigo urso. Gaia, vamos chamá-lo assim, era enorme e vez ou outra encontrava, outros ursos que vagueavam pelo parque à procura de alimento ou de companhia. Gaia, como qualquer animal silvestre, funcionava como um ecossistema ambulante, se alimentando de peixes e animais menores, sobrevivendo, adubando o solo com seus restos (que eufemismo...) e carregando consigo as estrelas dessa estória: as pulgas. Ah, as pulgas... Elas habitavam por todo o corpo de Gaia, não havia lugar onde não se enfiassem. Gaia não sabia da existência das pulgas, apenas sentia a presença delas, sob a forma de um incômodo aqui e ali. Como acontece com outros animais que carregam pulgas, Gaia tentava em vão coçar para se livrar daquela perturbação. Fazia isso geralmente se esfregando no chão, contra alguma árvore, mordiscando seu pelo freneticamente, em ações que sempre conseguiam amenizar aquela chateação, matando algumas pulgas, mas sem encerrar o problema em definitivo. Depois de cada coçada, as pulgas geralmente se aquietavam, choravam os mortos sem entender bem o que acontecia e seguiam suas vidas pequenas no pulguedo. Pulgas raramente refletiam sobre as coisas que aconteciam com elas e tampouco tinham noção de que habitavam um ser vivo e não uma casa, por exemplo. Quando se alimentavam, nesse caso, do sangue de Gaia, estavam causando pra ele um certo desconforto, mas como não pensavam muito no que estavam fazendo, não sabiam que o incomodavam. Algumas pulgas tinham a noção do que estava acontecendo e sabiam que dependiam de Gaia para viver. Sabiam também que, de certo modo, incomodavam o seu hospedeiro. Mas, como não podiam fazer nada a respeito, nada faziam. Com o tempo, essas pulgas perceberam as azaradas que morriam esmagadas pertenciam a pulguedos onde o consumo de sangue do pobre Gaia era exagerado, eram gordas as pulgas que mais incomodavam! Tentaram alertar as pulgas fominhas que se, quem sabe, reduzissem seu apetite, pudessem escapar das vigorosas coçadas que Gaia, de vez em quando e sem aviso prévio, dava. Não escutaram. O resultado era que, cada vez que Gaia se coçava, o corpo inteiro sacudia e se rebolcava e, como isso, mesmo os pulguedos formados na sua maioria por pulgas tranquilas se sacudiam para lá e para cá, matando habitantes que nem estavam incomodando. Gerações e gerações de pulgas se sucediam no lombo de Gaia, que continuava a vaguear naquele imenso parque, no topo da cadeia alimentar. Entretanto, tudo que vive, morre, como manda o ciclo da vida. Um belo dia, o velho Gaia, já com idade avançada, procurou sua caverna entre as rochas para hibernar e dormiu por um longo período. Sem se coçar e ficando quietinho, Gaia permitiu que a população de pulgas aumentasse enormemente, cobrindo seu o corpo de feridinhas. Esses machucados permitiram que micróbios e bactérias entrassem na pele de Gaia, ocasionando nele uma série de infecções, que se espalharam e causaram a morte do velho urso marrom em apenas alguns dias. Alheias ao que tinha acontecido, as pulgas só notaram que algo estava errado quando tentaram se alimentar e não conseguiram. Acharam que era algo passageiro e aguardaram um pouco. Como nada acontecia, abandonaram Gaia na busca de uma nova morada. Algumas conseguiram pegar carona em ratos e outros roedores pequenos que por ali circulavam, mas a maioria esmagadora ficou sem alimento e morreu. As que sobreviveram aprenderam a lição e me contaram essa estória, que hoje relato para vocês. Gaia é o planeta Terra e as pulgas, somos nós.